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TEMPS, MÉMOIRE, NARRATION: MAIS UMA CONTRIBUIÇÃO

DE JEAN-PIERRE MARTIN PARA OS ESTUDOS SOBRE ÉPICA MEDIEVAL

 

 

MARTIN, Jean-Pierre. Temps, mémoire, narration (Discours de l’épopée médièvale 2). Paris: Honoré Champion Éditeur, 2020, 390 p.

 

Christina Ramalho[1]

Universidade Federal de Sergipe

 

Número 71 da coleção intitulada Essais sur le Moyen Âge [Ensaios sobre a Idade Média], dirigida por Catherine Croisy-Naquet e Francoise Laurent, e publicada pela editora parisiense Honoré Champion (www.honorechampiom.com), o novo livro do medievalista especializado no estudo das canções de gesta Jean-Pierre Martin é, na verdade, uma reunião de textos que nos colocam em contato com trinta anos dedicados à pesquisa sobre o tema, em suas diversas variantes.

A obra apresenta vinte textos enumerados em romanos e agrupados em cinco partes, antecedidas por considerações iniciais (“Avant-propos”), que resumem a proposta da edição, e sucedidas por vasta bibliografia – organizada em categorias: canções de gesta citadas; outras obras citadas; publicações da Société Rencesvals para o estudo de epopeias romanas; estudos de língua e de literatura medieval; teoria literária, linguística e antropologia; e  história –, um índice de obras citadas e um índice de nomes de autores.

 

O título desta resenha se justifica pela relevância do autor da obra. Jean-Pierre Martin, professor emérito da Université d’Artois, é uma das mais importantes referências não apenas quando se tem com corpus literário a canção de gesta como quando se deseja abordar expressões do gênero épico, de forma geral. Entre muitas outras publicações do autor, chamo a atenção para de Les motifs dans la chanson de geste. Définition et utilisation (Discours de l’épopée médiévale 1), texto de 1992, que recebeu uma segunda edição pela Honoré Champion em 2017, para integrar, como número 65, a coleção já citada e cujo subtítulo indica a relação direta com Temps, mémoire, narration (Discours de l’épopée médiévale 2). As duas obras em conjunto, portanto, compõem uma sólida abordagem à epopeia medieval, em especial da canção de gesta.

Jean-Pierre, com suas reflexões, nos permite chegar a uma ampla compreensão da manifestação literária nomeada como “canção de gesta”, por ele caracterizada, de forma sintética, em verbete que compõe o “Mapeamento de Obras Épicas”[3]:

 

[...] canções de gesta são uma forma épica completamente original, representada principalmente na França, mas que se desenvolveu em toda a Europa Ocidental. Elas se caracterizam por um tema geral: a história das façanhas de guerra, mais frequentemente realizadas por cavaleiros cristãos; e uma forma particular: a composição em laisses, estrofes decassilábicas ou alexandrinas assonantes ou rimadas em um timbre final único e de extensão extremamente variável (de 3 a mais de 1000 versos, situando-se em média entre 20 e 50). Com algumas exceções, sua extensão total geralmente varia entre 4000 e 12000 versos. Embora nenhuma melodia tenha chegado até nós, o termo canção de gesta, figurando efetivamente em alguns desses textos, significa que, pelo menos na origem, era um poema cantado ou, mais provavelmente, salmodiado. E a palavra gesta, do latim gesta (ações), indica que elas se apresentavam como a narrativa de fatos ocorridos no passado, não obstante a natureza largamente lendária de seu conteúdo; por extensão, essa palavra também assumiu o significado de “um conjunto de atos heroicos realizados por membros da mesma linhagem” ou, ainda, “família heroica”.

 

Se, em Les motifs dans la chason de geste. Définition et utilisation, Martin discorre sobre conceitos teóricos relacionados ao gênero canção de gesta, observando a ambiguidade de determinados termos; elege a abordagem semiótica como o norteador metodológico para definir o conceito de “motif” – mais especificamente de “motifs narratifs” –; apresenta um levantamento de abordagens de folcloristas ao tema dos motivos narrativos das canções de gesta; estuda modelos estruturalistas, a partir de Propp e de outros nomes; propõe uma investigação que propõe a observação da “anatomia” das canções de gesta; e toma como corpus para análise de motivos e temáticas, as obras Raoul de Cambrai, Orson de Beauvais, Aye d’Avignon, Garin le Loherenc e Gerbert de Mez; em Temps, mémoire, narration, Martin passa a investir em outro aspecto também relevante para a compreensão das epopeias medievais: o tempo.

Depois de, em “Ouverture”, discorrer, de forma introdutória, sobre “I. Les structures temporelles de la narration dans le épopée médièvale” [I. As estruturas temporais da narração na epopeia medieval], dando especial destaque ao que chama de “le temps de l’épopée” [o tempo da epopeia], diferenciando o “tempo do evento épico” do “tempo do relato épico” propriamente dito, e relembrar a própria categoria do mito em sua temporalidade, trazendo exemplos de canções de gesta para ilustrar as considerações iniciais, por meio, inclusive, de comparações entre elas, Martin parte para as seções que integram as três divisões do livro. Antes, porém, sintetiza:

Sous les différentes angles qui ont été envisagés, le temps des épopées médiévales apparaît comme un temps compact. Les légendes qu'elles nous rapportent se situent dans un espace-temps spécifique, dont les règles de fonctionnement demeurent à peu près les mêmes d'un texte à l'autre, dont les personnagens, les événements,  d'un texte à l'autre, se retrouvent, se répondent, et même se reproduisent et se développent (MARTIN, 2020, p. 36).

 

[Dos diferentes ângulos que foram considerados, os tempos das epopeias medievais aparecem como um tempo compacto. As lendas que elas nos contam localizam-se em um determinado espaço-tempo, cujas regras de funcionamento permanecem mais ou menos as mesmas de um texto para outro, cujos personagens, acontecimentos, de um texto para outro, se reencontram, respondem uns aos outros e até se reproduzem e se desenvolvem].

 

 

Assim, a primeira parte, reunindo textos numerados de II a IX, trata do “tempo épico” [le temps épique], refletindo, dentro do contexto da Idade Média, sobre as relações entre história e mito; as ideias de passado histórico e passado mítico; as referências ao mito troiano; a presença dos sarracenos no imaginário épico e a construção da memória. Para isso, Martin se faz acompanhar por críticos como Daniel Madelénat, J. Bédier, J. Frappier, G. Dumézil, entre outros nomes, sempre recorrendo a obras literárias para demonstrar os aspectos que levam à visão da especificidade do tempo épico nas canções de gesta. Entre outras observações, Martin destaca que:

La chanson de geste ignore ce repérage dans le temps. Son contennu n'est pas inscrit dans la continuité ininterrompue des ans et des règnes, mais uniquement das le cycle annuel: ce sont d'une part  les grandes fêtes, Pâques, Noël el la Pentecôte, fête de la chevalerie (MARTIN, 2020, p. 57).

[A canção de gesta ignora esta reparação no tempo. Seu conteúdo não se inscreve na continuidade ininterrupta de anos e reinados, mas apenas no ciclo anual: por um lado, são as grandes festas da Páscoa, do Natal e do Pentecostes, festa da cavalaria]

Em toda essa primeira parte, Martin soma considerações sobre as interpenetrações entre história e mito, sempre destacando, com exemplos, o fato de que as canções de gesta, a seu modo, subvertem esses conceitos, criando, internamente, referentes próprios que caracterizarão o que Martin demarca como “tempo épico”. E essa leitura é fundamental para que se compreenda melhor o tipo de construção de memória que essas produções literárias realizam e também para que se possa melhor perceber o período medieval no qual as canções de gesta se inserem, já que tanto a Antiguidade greco-romana como o imaginário bíblico farão parte da composição dessas obras.

Na segunda parte, Martin passa a tratar do “tempo dos personagens” e, para isso, apresenta dois textos: “L’âge des héros. À propos de Garin de Loherenc” [A era dos heróis. Sobre Garin de Loherenc] e “Le temps vecú” [O tempo vivido]. O primeiro texto tem início com uma distinção entre as canções de gesta que permite seu agrupamento em duas “grandes tendências”: as que estão centradas em um evento particular (como uma batalha, uma conquista ou um período da vida do herói), como A Canção de Rolando e as canções do ciclo de Guillaume d’Orange, e outras, ainda, que, segundo Martin, reúnem vários eventos localizados no mesmo período da vida de um personagem, tal como a canção de gesta Couronnement de Louis ou a Bataille Loquifer. Nesses casos, a temporalidade é relativamente curta e envolve episódios mais específicos relacionados ao herói e algum inimigo seu, em geral um sarraceno.

A outra tendência traz canções de gestas com perfis biográficos, que narram a vida do herói, tal como ocorre com Renaut de Montauban, Ami et Amile, La Chevalerie Ogier, Girart de Roussillon ou Beuve de Hamptone. Como é fácil constatar, nessa tendência, o tratamento dado ao tempo é completamente diferente, visto que o número de eventos é maior e a estrutura de composição do herói tem um desenho mais complexo que pode envolver nascimento, casamento, enfrentamentos, morte e mesmo relações com outras personagens heroicas. Assim, nesse capítulo da segunda parte, Martin nos leva a pensar nessas tendências, observando algumas obras, com destaque para a obra Garin de Loherenc.

Já em “O tempo vivido”, Martin discorre sobre o tempo presente nas canções de gesta que não está exclusivamente relacionado às ações heroicas, mas ao cotidiano vivido pelos personagens, ainda que expressiva parte desse cotidiano seja sobredeterminado pelas ações de combate. Um cotidiano que envolve: “jeux, repas, voyages, etc, dont chacun a son moment et sa durée” [jogos, refeições, viagens, etc., cada um dos quais tem seu momento e duração, acontecem] (2020, p. 183). Para refletir sobre essa presença, Martin levará em consideração tópicos como a cronologia; o modo como se compõe o tempo dos combates, incluindo o tempo mais longo do “cerco” aos inimigos; as viagens; as feridas; as ações diurnas e noturnas.

 

Como se vê, Jean-Pierre Martin nos faz mergulhar nos detalhes que compõem o tempo dos personagens, sublinhando a significação que se pode extrair dessa percepção atenta que escapa da concentração voltada apenas para o que seria o evento aparentemente principal.

Por fim, na terceira parte do livro, intitulada “Temps et discours épique” [Tempo e discurso épico], Jean-Pierre Martin se voltará para o tema da memória que o texto épico medieval, no caso, as canções de gesta, com suas especificidades temporais, registra como discurso, investindo, para isso, nos motivos ou padrões retóricos, observados em abordagens plurais a diferentes canções de gesta. Essas abordagens estão centradas na observação dos aspectos linguísticos que incidem para a construção do sentido, tais como os recursos relacionados ao ritmo do relato épicos, tais como, entre outros, as elipses, os sumários, as pausas, as reiterações, etc. De um lado, com as leituras que realiza, Jean-Martin revela as especificidades de algumas obras que têm maior destaque em seu livro, de outro, compõe um panorama da produção épica medieval que nos permite ver claramente os pontos de congruência discursiva entre as diversas canções de gesta citadas.

A terceira parte, para alcançar seu propósito de investimento no discurso épico em sua relação com o tempo, reúne sete textos, a saber: “Mémoire et legende: deux modes de la narration en ancien français” [Memória e lenda: dois modos de narração em francês antigo], “Archaïsme et style épique” [Arcaísmo e estilo épico], “Temps de l’histoire, temps du récit dans les chansons de geste” [Tempo da história, tempo do relato nas canções de gesta], “Remarques sur les réctis rétrospectifs et les genres narratifs de la Chanson de Roland au Tristan en prose” [Notas sobre os comentários retrospectivos e os gêneros narrativos da Canção de Rolando em Tristão em prosa], “Dire l’avenir” [Dizer o futuro], “Une narration plurilinéaire : le jeu des motifs dans Garin le Loherenc” [Uma narrativa plurilinear: o jogo de  motivos em Garin le Loherenc] e “’Vue de la fênetre’ ou ‘panorama épique’ : fonctions narrativas d’un motif rhétorique” ['Vista da janela' ou 'panorama épico': funções narrativas de um motivo retórico].

Na conclusão do livro, Jean-Pierre Martin ainda abre espaço para a observação crítica de uma canção de gesta – XIX. L’imaginaire de la temporalité dans Raoul de Cambrai [XIX. O imaginário da temporalidade em Raoul de Cambrai], leitura que, de algum modo, sintetiza toda a experiência de abordagem à canção de gesta desenvolvida no decorrer do livro. E, em “Coda”, sua própria “canção de encerramento”, Martin volta a sublinhar a necessidade de se perceber e compreender o tempo própria das canções de gesta e evidencia o poder discursivo dessa manifestação literária como fator de construção de uma memória medieval em que passado histórico e passado mítico se interpenetram e muitas vezes se fundem. E, em suas palavras finais, ele destaca também a relação entre as canções de gesta e seu público e as peculiaridades estéticas e ideológicas dessas obras.

Seria uma grande sorte para o público falante da língua portuguesa que Temps, mémoire, narration pudesse merecer uma tradução à altura de sua importância como obra fundamental de referência para quem deseja se debruçar sobre uma produção literária que ainda tem muito a dizer ao mundo, por todos os componentes míticos e históricos que possui e, também por serem discursos vivos de um tempo que, em muitos aspectos, ainda hoje vive.

 

 

[1] Doutora em Letras (UFRJ, 2004). Professora-Associada 1 da Universidade Federal de Sergipe. Membro do CIMEEP, do GELIC, do REARE e do IIS. Coordenadora, com Margaret Anne Clarke do GT 5 – Historiografia Épica.

[2] Fonte: https://www.honorechampion.com/fr/champion/11289-book-08535348-9782745353481.html.

[3] Ver o verbete sobre o subgênero “canção de gesta” assinado por Jean-Pierre Martin em: https://www.cimeep.com/mapeamento.

Fonte: RAMALHO, Christina. Temps, mémoire, narration: mais uma contribuição de Jean-Pierre Martin para os estudos sobre épica medieval. In: Revista Épicas.  Ano 4, N. 8, Dez 2020, p. 311-317. ISSN 2527-080-X.

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