Sobre a morte e a fênix
Foi com um grande poeta que eu aprendi a pensar nos sentidos possíveis e nos impossíveis que a morte pode ter: Ivan Junqueira. Instigada por Helena Parente Cunha a estudar a poesia dele (2004-2005), eu me vi diante da maior experiência que tive de me defrontar com o avesso de mim mesma ao me debruçar sobre uma poesia lindamente mórbida, produzida por um ateu (segundo ele próprio me disse), e ao mesmo tempo tão carregada de "poesia" que se fazia, paradoxalmente, vida em si mesma. Daí eu ter associado seus poemas à harpia e sua poética à fênix, duas figuras mitológicas maravilhosas para se refletir sobre a temática da morte e o modo como nos relacionamos com ela.
O estudo me fez crescer enormemente, sem perder nada da centelha solar que me faz tão cheia de vida. Mas, a partir de Ivan, a morte se incorporou naturalmente a meu olhar para o mundo. Ivan foi um poeta raro. Suas rimas toantes, sua erudição bem aproveitada, sua milimétrica preocupação com a forma e a visão aguda e crítica que tinha do mundo me impactaram tanto que o texto sobre os livros dele veio como uma tormenta na cabeceira de um rio e explodiu absoluto, numa escritura que fiz mais solitária que nunca, talvez como espelho do encontro solitário que todos teremos com a morte. Fizemo-nos amigos. E ele, que, ao me conhecer e ao saber de minha intenção de estudar sua obra, me disse "há estudos críticos que melhor seria que não houvesse", para, no dia seguinte, me convidar a ir à ABL para buscar seus livros, recebeu o resultado final com uma satisfação que fez valer cada segundo em que eu me perdi no enfrentamento com matéria tão difícil para mim.
Em Ivan eu vi, apesar da aparência mais palpável das harpias em seus poemas, a verdadeira personificação da fênix. E já que hoje é "Dia dos mortos", falarei um pouquinho sobre essa figura mitológica deslumbrante.
Quatro vertentes da impregnação simbólica da fênix no imaginário coletivo e individual parecem-me bem interessantes para explicar os sentidos que brotam de sua imagem.
A primeira refere-se a duas imagens egípcias da fênix relacionadas ao caráter "patróforo" do mito, uma vez que essa ave, além de autógena − é pai/mãe e filho/filha de si mesma −, cumpre o ritual da migração das cinzas remanescentes, ou seja, à fênix renascida cabe a missão de transportar os resíduos de sua existência anterior até o altar do Sol, onde ocorrerá a definitiva sublimação física do passado. Essas imagens retratam dois momentos diferentes, ou seja, aquele em que a fênix vivencia a experiência da fênix/filho/filha, ao carregar o ninho de mirra contendo as cinzas da fênix/pai/mãe, a serem depositadas no altar do Sol; e o outro, em que a fênix/pai/mãe, ao pressentir a morte próxima, parte da Arábia em direção a Heliópolis, onde se submeterá ao ritual da cremação, que terá a duração de três dias. Nota-se, pois, que, mesmo destinada à eternidade da vida renovada, a fênix passará pelo ritual da morte de uma existência primeva que servirá de energia recriadora para a nova vida. Os vínculos entre a fênix/pai/mãe e a fênix/filho/filha são estabelecidos pela missão da segunda de sagrar as cinzas ou restos da primeira. Curiosamente, portanto, a fênix, apesar de representar um mito da longevidade, também insere em sua simbologia a experiência da morte.
A segunda versa sobre a relação da fênix com as forças elementais da água e do fogo. Como o sol, a imagem da fênix, na aurora, vincula-se a seu reflexo nas águas do Nilo. No poente, contudo, a fênix projeta-se no fogo solar até confundir-se com as trevas da noite, preparando-se para ressurgir das cinzas na aurora do novo dia que virá. Assim, a fênix caminha da água para o fogo, usando o ar como caminho e a terra como depositária da transição vida/morte/vida.
A terceira vertente vem da alquimia e está imediatamente relacionada à segunda, pois diz respeito à natureza da transformação da fênix, que pode ocorrer pela via úmida (a decomposição do corpo) ou pela via seca (a cremação do corpo). Água e fogo, mais uma vez, presentificam-se na autogênese da figura libertadora. E isso é muito interessante se pensamos no enterro ou na cremação como formas de lidarmos com a "cinza" ou o pó em que nosso corpo material se converterá.
A última diz respeito à visão de Apollinaire, que relacionou o mito da fênix à perenidade concedida ao poeta que faz da poesia sua força renovadora e ressuscitadora. Nessa linha de raciocínio, por exemplo, Marie Miguet aponta na poesia de Apollinaire a migração de um estado de fogo trágico para o do fogo apoteótico. O poeta seria, assim, um eterno filho do Sol, uma fênix.
Por meio da poesia de Junqueira, a fênix (que eu vi nele, fazendo-se eterno por meio da eternidade de sua poesia) passou a ser, para mim, a representação máxima do que a morte significa. Renascimento.
E se a morte é renascimento, é também vida. E eu hei de encontrar o Ivan algum dia, talvez conversando com T. S. Elliot, e espero que ele me dê um de seus raros sorrisos (embora sua generosidade sempre sorrisse por dentro), assumindo a única morte que eu espero que ele tenha vivido: a do "ateu". Porque há muitas vidas nesse momento epifânico de morrer.
Se a "poesia-harpia" de Ivan disse versos assim:
É sobre ossos e remorsos
que trabalho. É sobre
pó calcário espinho cardo
que afio o escalpo. É
sobre tudo o que não presta
que vegeto, réptil,
em busca de uma vértebra,
um reflexo, uma aresta
que me devolvam a fala,
a face, a insânia, o pasmo.
É desse nada que me basto
e faço agora o meu repasto
("Áspera cantata)
o "poeta-fênix" também falou:
E foi lá, entre esfíngico e campestre,
que me ensinaste a ver como o homem pode
tornar-se eterno sendo o que é, terrestre.
("terzinas para Dante Milano")
e:
Espelho de meus espectros,
urna de engodo e miséria,
alma sôfrega e sem tréguas,
osso escasso no deserto,
onde jejua um profeta,
solidão, infâmia e tédio
− eu sou apenas um poeta
a quem Deus deu voz e verso.
No "Dia dos mortos", minha saudação (e minha saudade) a um poeta que venceu os ponteiros. Cabe a nós vencermos os nossos, vislumbrando a fênix radiosa que nos habita e enfrentando seu momento de transição com serenidade e até alegria, já que a vida é eterna.
A crônica foi publicada no e-book Catimbó, que reúne 100 crônicas de minha autoria. Quem quiser acessar o e-book na íntegra, basta visitar https://www.ramalhochris.com/livros-books-livres-libros e clicar na imagem do livro. A referência da crônica é: RAMALHO, Christina. Sobre a morte e a fênix. In: _______. Catimbó. crônicas reunidas. Natal: LucGraf Virtual, 2018, p. 251-255.